A arte de sentir: “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir” de Carminho

O novo álbum de Carminho é absolutamente mágico: Daqueles que nos fazem flutuar em cada palavra, em cada respiração de cada canção. Há nele uma honestidade rara, uma profundidade que se sente verso a verso, como se cada sílaba carregasse o peso e a beleza de uma vida inteira.

É a representação perfeita do abstrato e do exato. A prova de que o fado também se transforma, sem nunca perder a sua essência. É o desespero, é a dor, é a saudade. As canções avançam de forma doce, mas sentida e ofegante, até ao clímax como se percebe, aliás, em “Balada do país que dói”. Ao ouvir Carminho, os olhos não “choram mágoas” (como canta em “Pela minha voz”) choram comoção. Choram pela beleza e pela pureza de cada palavra.

Desde o universo visual até à construção de cada verso, este é um dos álbuns mais belos e coerentes que já ouvi. Um verdadeiro privilégio de escutar. Vive-se cada segundo de cada música, como se o tempo parasse. São canções que cabem em muitas histórias, e isso é a verdadeira versatilidade da arte.

Há dias, depois de ler Theodor W. Adorno, pensava na forma superficial como a música é hoje construída — despojada de reflexão, feita para consumo rápido. A indústria habituou-nos a ouvir sem pensar, a sentir sem mergulhar. Mas com Carminho, isso é impossível. A sua música exige entrega. Não é mercadoria. É arte na sua forma mais crua, sincera e humana.

Este álbum lembrou-me um episódio de há algum tempo, num banco de jardim em Madrid. Uma senhora sentou-se ao meu lado e, depois de conversarmos, disse-me que adorava Portugal. Notava semelhanças entre portugueses e espanhóis, mas acrescentou que Portugal lhe parecia mais triste e deu o fado como exemplo. Fiquei a pensar se teria razão.
Seremos nós, portugueses, mais tristes? Estará o inconformismo, a dor, essa melancolia luminosa, na nossa própria génese? Talvez seja isso que faz nascer produções musicais tão profundas como as de Carminho. É disso que é feito o fado. Uma mistura de desespero e ternura, de lucidez e emoção. Por isso é tão poético, tão realista e tão pessoal.

O fado pertence a quem o sente.

Capa do disco “Eu Vou Morrer de Amor ou Resistir” de Carminho / DR

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